Cherreads

Chapter 52 - A Ala Dos Servos.

Kátyra e Tharion ainda discutem.

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Ela não tem resposta.

Só o silêncio.

Tharion a encara por mais alguns segundos, depois passa por ela, indo ajudar um jovem Bardaxa a recolher alguns pertences do ancião. Kátyra fica ali, parada, ouvindo o som das correntes sendo recolhidas, da vida seguindo — mesmo naquela miséria.

E então, pela primeira vez, ela olha ao redor... e realmente vê.

Não como princesa. Não como uma herdeira de sangue puro.

Mas como alguém que falhou em perguntar.

Aelys se aproxima em silêncio. Não diz nada. Apenas coloca a mão no ombro da amiga. Kátyra segura firme, como quem segura uma âncora.

---Exterior da vila – entardecer.

O grupo parte em silêncio. Nenhuma música, nenhuma comemoração.

No horizonte, a estrada leva até o brilho alaranjado de torres de mármore: a mansão de Lorde Varcrest, o primeiro ponto de descanso.

Mas as palavras de Tharion ainda estão ecoando. Não só em Kátyra, mas também em Aelys — que, ao ver a vila, lembra-se de algo que mantinha guardado num canto da alma.

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FLASHBACK – Aelys, aos doze anos

Ela esgueira-se por um beco de pedra com os pés descalços, carregando livros demais para seus braços pequenos. Os olhos brilham com uma curiosidade faminta. Sua mãe a repreende por trazer mais livros da biblioteca real — tem medo que ela se meta com "coisas de sangue azul".

Mas naquela semana, O jovem aprendiz dos Guardiões estava na vila, catalogando arquivos antigos. Orren.

Aelys esbarrou nele no pátio da biblioteca. Livros caíram. Ela murmurou desculpas, sem conseguir olhá-lo nos olhos.

Orren riu, recolheu os livros e disse:

— Você devia estar escrevendo um grimório, não carregando os dos outros.

Ela corou. E naquele instante, o mundo pareceu parar.

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Voltamos ao presente – Chegada à mansão Varcrest

Os portões se abrem. O contraste é brutal.

Do lodo à seda. Do silêncio ao tilintar de taças.

Servos nobres guiam o grupo pelos corredores. Lorde Varcrest, velho amigo de Adam, os recebe com cortesia. Mas seus olhos pousam mais tempo em Tharion do que em qualquer outro.

— Um Bardaxa? — murmura. — Tempos estranhos mesmo.

Tharion não responde.

No jardim da mansão, mais tarde

Aelys está sentada em um banco de pedra, observando as mesmas flores da noite anterior. Orren aparece, trazendo duas xícaras de chá.

Ela o olha com aquele mesmo olhar de menina curiosa. Mas agora, com a dor de quem carrega um passado e um segredo.

Kátyra observa de longe, em silêncio, até que Orren se afasta. Ela se aproxima e senta ao lado de Aelys.

— Aelys... Eu queria pedir desculpas. Por tudo. Por não ver o que estava na minha frente.

Aelys sorri, cansada.

— Ver é só o começo, Kátyra. A pergunta é: o que vai fazer agora que viu?

Kátyra não responde.

Mas os olhos dela já mudaram.

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Interior da mansão Varcrest — Ala dos servos, madrugada

Tharion não consegue dormir. As palavras que trocou com Kátyra ardem na mente. Ele caminha pelas áreas menos iluminadas, onde os Bardaxas da mansão estão alojados. O som abafado de tosse, correntes rangendo discretamente, e o cheiro úmido da pedra gasta o envolvem como um abraço antigo e doído.

Uma criança chora num canto. Um velho murmura em delírio. Uma mulher dorme sentada, ainda com os pés inchados e sujos da jornada.

Tharion se agacha ao lado dela. Observa os calos, as marcas... e o vazio no olhar dela mesmo dormindo.

Ele se levanta devagar. As mãos cerradas, o peito inflando.

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Salão nobre — pouco depois

Kátyra caminha pelos corredores com uma taça de vinho, tentando encontrar silêncio. Mas encontra Tharion no centro do saguão, sozinho — e furioso.

Ele vira, os olhos ardendo.

— Eles estão dormindo no chão, Kátyra. De novo. Como sempre.

Ela tenta manter a compostura.

— Eu falei com Varcrest. Pedi acomodações melhores...

— E ele sorriu e mentiu. Como todos eles fazem. Como todos vocês fazem.

— Eu não sou "vocês", Tharion.

— Não? Então me responde.

Ele dá um passo à frente, a voz firme como aço.

— Qual o nome da cozinheira que te preparou aquele pão de amêndoas que você ama?

Ela tenta pensar. Trava.

— E o jardineiro que cuidava dos dragoeiros no pátio da sua avó?

— Eu...

— E o rapaz da roupa remendada que levava os bilhetes escondidos até Tharion nos portões do palácio?

Ela se cala.

— Você nem viu ele, né? Mas eu vi. Vi quando ele foi pego e chicoteado. Vi quando ele foi jogado fora como um pano sujo.

— Tharion, chega!

— Chega?! Isso aqui já passou do chega, Kátyra! Você desfila com vestidos costurados por mãos feridas, come o pão de gente que não pode alimentar os próprios filhos, e ainda vem me olhar como se eu fosse o problema?

Ela endurece.

— Eu estou tentando mudar!

— Tentando?! Você está "tentando" como quem tenta aprender flauta. Isso aqui não é música, Kátyra. É sangue. É morte. É gente que só existe quando serve.

Ele respira fundo, e aí solta:

— Você não é a herdeira dos Guardiões. Você é a herdeira do esquecimento.

Silêncio brutal.

As palavras atingem como lâminas.

— Me perdoa... — ele murmura, já arrependido, mas sem força pra recuar.

— Sai daqui, Tharion.

Ela está de cabeça erguida, mas os olhos tremem.

— Agora.

Ele hesita, depois se vira e vai. As palavras dele ecoando mais nele do que nela agora. O peso do excesso.

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Minutos depois — Corredor da ala nobre

Tharion passa pela porta do quarto de Kátyra. Está prestes a seguir adiante, quando... ouve.

Gemidos abafados.

A cama rangendo.

Risos sussurrados.

O sangue dele congela. Ele se aproxima — o som vem claramente de dentro. E então, uma risada suave. A voz de Aelys, entrecortada. E depois, algo de Orren.

Tharion dá um passo pra trás.

Como se tivesse levado um soco no estômago.

— Claro... claro — ele murmura, a voz amarga, ferida, traída por algo que nem sabia que ainda esperava.

Sem pensar, ele se afasta, os passos pesados pelo corredor.

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— Tharion no estábulo, sozinho

Ele soca a parede de madeira. Duas vezes. Três. O sangue escorre dos nós dos dedos. Os cavalos relincham, inquietos.

— Idiota... — sussurra. — Você é idiota.

Mas ele não diz se está falando de si mesmo.

Ou dela.

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