Cherreads

Chapter 66 - Ecos nas terras baixas.

---

Capítulo – Ecos nas Terras Baixas

O portão enferrujado rangeu sob a pressão das mãos de Tharion. Ele respirou fundo ao cruzar o limiar. As Terras Baixas exalavam um cheiro antigo, de terra molhada, fuligem e promessas quebradas. Mas havia ali também algo novo. Esperança.

Ao abrir uma porta oculta nos fundos do velho Santuário abandonado, encontrou o brilho cálido da biblioteca escondida — aquela que só surgia para quem conhecia os caminhos secretos do Erudito. Ao entrar, seus passos suaves ecoaram entre as colunas de mármore e estantes infindáveis.

Kátyra estava sentada em uma poltrona, coberta por um manto dourado. Liora dormia nos braços dela, e Titos brincava com pequenas criaturas feitas de papel que flutuavam no ar, criadas por magia silenciosa do Erudito. Aelys lia, atenta, no canto, mas ergueu os olhos ao vê-lo entrar.

— Você demorou — disse Kátyra com leve ironia, mas havia um quê de angústia real na voz.

Tharion caminhou até ela, tocou sua testa com carinho e beijou a mão de Liora. Depois olhou nos olhos da princesa, e sua expressão se endureceu.

— Uma nova praga começou.

Kátyra imediatamente se endireitou, os olhos se acendendo com instinto de liderança.

— O que aconteceu?

— Crianças estão desaparecendo — disse ele, direto. — Sem gritos. Sem rastros. Algumas dormindo, outras brincando. Somem como se nunca tivessem existido. Os Guardiões suspeitam de um culto antigo, possivelmente Ataxa, usando portais esquecidos. E eu preciso que você fique.

— Tharion...

— Não. — Ele ergueu a mão, firme. — Você acabou de dar à luz. Está fraca, e o bem mais precioso que temos está aqui. Seus pais sabem. Estão confortáveis com a escolha de Dimitry. Ele mesmo me encarregou de manter você aqui, segura, até que possamos garantir o resto do reino.

Kátyra rangeu os dentes. O sangue de rainha ardia, mas ela também segurava a filha no colo, e a dor no ventre ainda pulsava.

— Quero vê-los. Pelo menos ouvir a voz deles.

— Em breve — disse ele, com um suspiro. — Mas não hoje.

Ela olhou para Aelys, que abaixou os olhos. Kátyra bufou, irritada, mas não protestou mais.

---

– Escritório Improvisado nas Terras Baixas

O Erudito surgia e desaparecia pelas paredes da antiga cidadela. Com o estalar dos dedos, fazia ferramentas voarem, colunas se restaurarem e até canais de água voltarem a correr sob a cidade. Tharion, com mangas arregaçadas, reunia os antigos chefes das vilas — agora aliados.

— A segurança será triplicada. Nenhuma criança dorme sozinha. Revezamento nas patrulhas. E tudo que parecer um eco... evitem. — disse ele diante do mapa. — O inimigo agora vem pelo silêncio.

— E quanto ao culto? — perguntou uma velha guardiã da vila de Myr.

— Vamos caçá-los. Cada símbolo, cada caverna, cada nome esquecido. — respondeu Tharion. — As sementes de Dimitry foram lançadas aqui também. Hora de fazê-las florescer.

O Erudito apareceu atrás dele, comendo um figo seco.

— E as raízes precisam de planejamento. Estrutura. Um povo bem alimentado grita menos. Uma cidade bem iluminada teme menos o escuro. Vamos reconstruir as Terras Baixas como jamais foram antes.

---

– Na Biblioteca.

Na penumbra dourada, Kátyra se levantou à noite para caminhar entre os livros. Aelys dormia com um volume aberto no colo, e os gêmeos estavam serenos. Titos segurava um doce na mão, entregue mais cedo pelo Erudito. A menina dormia com a mãozinha encostada no peito da mãe.

Tharion entrou em silêncio. Observou por um tempo e, quando Kátyra notou sua presença, não disse nada. Apenas sorriu. Ele a abraçou pelas costas, e ali ficaram um instante, em silêncio, entre os livros e os sonhos.

Todas as noites, ele voltava para ali. A biblioteca, agora, era seu refúgio. Seu lar. E sua promessa.

---

– Terras Baixas / Biblioteca de Cristal – "Coelhos, Chá e Desabafos"

Os dias nas Terras Baixas eram longos. O sol parecia mais inclemente ali, como se testasse a paciência de Tharion junto com os esgotos entupidos, os telhados quebrados e os olhos desconfiados dos moradores. Ao lado, o Erudito fazia sua aparição costumeira, com sua bengala que não precisava e seu paletó de botões desalinhados.

— Coelhos. — disse o Erudito, pela quinta vez em menos de uma hora.

Tharion, suado, coberto de poeira até os cotovelos, lançou um olhar de esgotamento.

— Se for mais uma fábula sobre coelhos ninjas voadores que plantam brócolis, eu juro que te amarro a uma carroça.

— Sabia que coelhos piscam com apenas um olho de cada vez? Fascinante. É um mecanismo ancestral. Sim, ancestral... como a fertilidade da terra. Oh, coelhos... — e saiu dançando entre tábuas e mapas abertos.

Tharion suspirou, frustrado.

– Biblioteca de Cristal – Mais tarde

Tharion adentrou a biblioteca, exausto. Encontrou Aelys sentada com o enorme tomo das linhagens abertas, e Titos brincando com livros flutuantes. O menino correu até ele e, sem cerimônias, agarrou suas pernas:

— Papai!

Tharion congelou. O mundo pareceu parar um segundo. Depois de todo o sangue, lutas e caos… ouvir aquela palavra derreteu o guerreiro.

Ele se abaixou, o puxou para os braços e riu com um brilho nos olhos:

— Você me chamou de… papai?

— Uhum. Aelys disse que você é. E você é forte. Então deve ser verdade. — Titos assentiu com a seriedade de um rei de cinco anos.

Tharion olhou para Aelys, que apenas sorriu e voltou ao livro.

— Quer chá? — o menino ofereceu um copinho de madeira improvisado. — É invisível, mas tá muito quente.

— O melhor chá que já tomei. — disse Tharion, emocionado, fingindo assoprar.

Minutos depois

Tharion comenta com Aelys, tentando desabafar:

— O velho ficou o dia todo falando de coelhos. Coelhos dormindo, coelhos pulando, coelhos que fazem túneis. Eu achei que ia enlouquecer...

Aelys congela, os olhos arregalados.

— Espera. Coelhos? Isso faz sentido. Ele estava tentando te fazer lembrar… fertilização! O solo nas Terras Baixas é ruim, né?

— Horrível.

— Exato! Coelhos fertilizam naturalmente o solo. Esterco! Ele estava te guiando, só não da forma direta…

Tharion bate a mão na testa, boquiaberto.

— Ele é insano. Genial. Mas insano.

Mais tarde, nos aposentos de Kátyra

Kátyra estava sentada na cama, os cabelos soltos, amamentando Liora com expressão distante. Quando Tharion entrou, ela sorriu e ele sentou ao lado dela, pegando com cuidado a mão livre da princesa.

— Pensei em um nome. Para a casa nas Terras Baixas. Algo como… Lar do Falcão.

Ela olhou para ele, esperançosa.

— E eu pensei em... ir com você amanhã. Eu preciso ajudar. Não posso ficar trancada aqui.

Tharion fechou os olhos, respirando fundo. Tentou manter a calma:

— Kátyra. Você acabou de parir . Está cansada. A praga das crianças ainda está se espalhando. E eu… eu estou tentando manter todos seguros. Me ajuda, por favor.

— Eu sou mais do que uma mãe! Eu sou uma princesa! Uma guardiã! Eu...

— EU PASSEI O DIA TODO OUVINDO SOBRE COELHOS! — ele explodiu. — Eu pisei em lama com cheiro de inferno, fiz cálculos de irrigação, fui chamado de "Senhor Pai" por um gênio maluco, e ainda tive que convencer um fazendeiro a parar de criar serpentes como mascotes!

Silêncio. Kátyra o olhava boquiaberta. Um segundo depois, os olhos dela se encheram de lágrimas.

— Desculpa. Eu só… — ela chorou baixinho. — Eu só queria… fazer parte de tudo. Ser útil.

Tharion se desesperou.

— Não, não, não… Droga. Eu sou um ogro. Eu sou o pior. Eu devia usar uma mordaça mágica.

Ele tentou enxugar as lágrimas dela com a manga suja e acabou sujando mais ainda.

— Ótimo, agora você está prateada e com lama. Eu sou um gênio.

Kátyra deu uma risada molhada e o empurrou de leve.

— Você é um idiota.

— Mas sou seu idiota. — ele murmurou, beijando-lhe a testa.

Do corredor, o Erudito apareceu brevemente:

— COELHOS.

E sumiu.

---

More Chapters