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Chapter 44 - Os Ecos da Convergência.

No alto de uma colina, onde árvores retorcidas se agarravam à terra como garras esqueléticas, uma figura encapuzada estava de pé. A noite era profunda, e a brisa fria trazia consigo o cheiro de terra úmida e, sutilmente, o odor metálico de ozônio e algo mais, algo podre e arcano. Seus olhos, ou o que se podia discernir deles sob o capuz, estavam fixos na mansão Freimann, que se erguia à distância, uma silhueta imponente contra o céu estrelado. Mesmo a essa distância, as marcas recentes do ataque das bestas alteradas eram visíveis para sua percepção aguçada – as cicatrizes escuras no solo, a vegetação queimada, a quietude antinatural que pairava sobre os jardins.

— Fumaça sobe dos jardins devastados… cicatrizes de fogo, de terra rasgada e sangue no chão. O primeiro passo… foi dado.

A voz, um sussurro rouco que parecia vir de dentro da própria sombra, não era dirigida a ninguém em particular, mas sim uma constatação, um eco de satisfação sombria. Na mão enluvada da figura, um fragmento negro de cristal pulsava com uma luz fraca e doentia. Não era o brilho vibrante de um cristal de mana puro, mas uma luminescência opaca, quase absorvente, que parecia sugar a luz ambiente em vez de refleti-la. Cada vez que o observador focava o olhar na mansão, o cristal em sua mão intensificava seu pulso, como um coração sombrio batendo em sincronia com sua vontade.

Seus olhos, que se revelavam completamente negros sob o capuz, sem íris ou pupila discerníveis, brilhavam com um tom esverdeado doentio, um reflexo da energia corrompida que ele manipulava. Não era a cor da vida, mas da decadência arcana, da putrefação de algo que um dia foi puro.

— Eles resistiram… mais do que previam. Mas resistência… é só uma ilusão frágil. O Nexo vibra. Está enfraquecido. Está… ao nosso alcance.

Um sorriso, mais uma contorção de músculos do que uma expressão de alegria, distorceu o queixo visível sob o capuz. A arrogância em sua voz era palpável, a certeza de uma vitória iminente. A resistência dos arcanistas da mansão era, para ele, apenas um atraso insignificante, um teste de sua própria paciência. O Nexo Arcano sob a mansão, aquele ponto de convergência de energia natural que Iria havia descoberto, era o verdadeiro prêmio. E ele podia senti-lo, como um predador sente o cheiro de sua presa ferida.

Ele então guardou o cristal em uma bolsa oculta sob suas vestes. Virou-se, e suas vestes negras, adornadas com detalhes em prata corroída que pareciam se contorcer e se dissolver nas sombras, arrastaram-se pelo solo úmido da colina. Não havia pressa em seus movimentos, apenas uma determinação fria e calculista. Caminhou em direção a uma fenda no chão, quase imperceptível na escuridão, a entrada de uma antiga catacumba selada há séculos. O ar ao redor da fenda era mais frio, mais denso, carregado com o cheiro de mofo e de algo ancestral, algo que havia dormido por eras e agora estava sendo despertado. A fenda parecia engolir a luz, e a figura encapuzada desapareceu nela, como uma sombra retornando ao seu lar.

★★★

O ar dentro da catacumba era pesado, saturado com o cheiro de terra revolvida, mofo e uma doçura metálica que arranhava a garganta. Era um espaço cavernoso, com pilares quebrados que se erguiam como dentes cariados de uma boca gigante, e arcos góticos rachados que se estendiam para o teto, perdendo-se na escuridão. A iluminação vinha de uma luz esverdeada pulsante, que não era natural, mas emanava de cristais corruptos cravados nas paredes e no chão. Esses cristais, antes translúcidos e vibrantes, agora pareciam absorver a luz, emitindo um brilho doentio que distorcia as sombras e dava um aspecto fantasmagórico a tudo. Não havia tochas ou velas comuns; a própria energia corrompida servia de luminária, um testemunho do poder que ali era manipulado.

No centro da câmara, um círculo de convergência fora meticulosamente traçado. Não era um círculo de giz ou tinta, mas uma intrincada tapeçaria de ossos polidos, alguns humanos, outros de criaturas desconhecidas, dispostos em padrões geométricos precisos. Entre os ossos, havia manchas de sangue seco, tão antigas que haviam se tornado parte da própria pedra, e fragmentos de metais antigos, corroídos e enferrujados, mas que ainda pulsavam com uma energia residual. Inscrições em uma língua esquecida, com caracteres angulares e ameaçadores, cobriam o chão e as paredes, brilhando fracamente com a luz esverdeada. Era uma linguagem que falava de sacrifício, de união com o vazio, de um retorno.

Estátuas deformadas de entidades ancestrais estavam espalhadas pela catacumba, como guardiões silenciosos de um horror esquecido. Algumas tinham olhos arrancados, deixando buracos negros e vazios que pareciam observar a todos. Outras tinham bocas costuradas com fios de tendão, ou braços multiplicados em formas antinaturais, como galhos retorcidos de árvores mortas. Eram representações de deuses ou demônios de um tempo imemorial, agora corrompidos e distorcidos, refletindo a própria natureza da Ordo Umbrae.

Um silêncio reverente pairava sobre o local, quebrado apenas pelo murmúrio baixo dos acólitos e o som ocasional de um osso estalando no círculo, como se as próprias fundações da catacumba estivessem se ajustando à energia que ali se acumulava. O ar era frio, mas uma estranha corrente de calor emanava do centro do círculo, um calor que não aquecia, mas queimava, como uma febre interna.

Então, ele entrou. O Mestre da Convergência, conhecido entre os seus como Veritas Umbrae. Sua figura era imponente, alta e esquelética, envolta em um manto negro que parecia absorver a pouca luz do ambiente. Seu rosto era parcialmente oculto por uma máscara de prata desgastada, antiga e corroída, de onde se projetavam filetes de sombra que tremulavam como fumaça viva, movendo-se e contorcendo-se como se tivessem vida própria. Não era uma máscara para esconder sua identidade, mas para proclamar sua devoção, para se tornar um com a escuridão que ele servia.

Sua voz não saía apenas pela boca, mas vibrava no próprio ar, um som gutural e ressonante que ecoava nas paredes da catacumba, fazendo os ossos no círculo tremerem. Era a voz de alguém que havia transcrito os limites da carne, que havia se tornado um canal para algo maior e mais antigo.

— O Véu… afina-se. O eco do Nexo vibra… e nós somos o martelo que quebrará o selo da falsa ordem.

Sua voz era um chamado, uma promessa de poder e aniquilação. Vários acólitos de mantos negros estavam dispostos em semicírculo ao redor do círculo de convergência. Alguns eram veteranos, seus rostos ocultos nas sombras, em silêncio absoluto, suas posturas rígidas e devotas. Outros, os novatos, tremiam levemente, seja por medo da magnitude do ritual que estava prestes a começar, ou por um êxtase febril que os consumia. Mas não havia fuga. Uma vez que se entrava na Ordo Umbrae, o compromisso era absoluto, a devoção inquestionável. Eles estavam ali por escolha, ou por desespero, mas agora estavam comprometidos, selados à escuridão que os aguardava.

O Veritas Umbrae ergueu as mãos, e as sombras ao seu redor pareceram se aprofundar, dançando em resposta à sua vontade. Os cristais nas paredes pulsaram com mais intensidade, e o cheiro de ozônio e podridão se tornou quase insuportável. O ritual havia começado, e com ele, a promessa de uma nova era, forjada na escuridão e na convergência de mundos.

★★★

Com a catacumba pulsando com a energia corrompida e a devoção fanática de seus acólitos, Veritas Umbrae ergueu as mãos, e um mapa etéreo materializou-se no ar à sua frente. Não era um mapa comum, desenhado em pergaminho ou papel, mas uma projeção tridimensional de linhas de fluxo arcano, que tremulavam e se contorciam como veias vivas de mana. No centro dessa intrincada rede, um ponto pulsava com uma luz vermelha e doentia: o Nexo Arcano sob a Mansão Freimann.

— Quando os tolos da linhagem arcana ergueram seu bastião sobre este solo, não sabiam... ou fingiram não saber... que selaram um fragmento do Véu. Uma âncora. Um nó de energia que impede o Retorno.

A voz de Veritas Umbrae ressoava, preenchendo cada canto da catacumba, carregada de desprezo e uma antiga sabedoria distorcida. Os acólitos, hipnotizados, observavam a projeção, seus olhos refletindo a luz vermelha do Nexo. O ar parecia vibrar com a intensidade de suas palavras, e o som das velas, que não eram velas, mas ossos estalando lentamente, tornava a atmosfera ainda mais macabra.

— Nós… vamos quebrá-lo. E quando cair… cairá também a falsa muralha que separa este mundo… do Vazio.

Um murmúrio de excitação percorreu os acólitos. A promessa do Vazio, o reino de onde seu deus viria, era a essência de sua fé. Veritas Umbrae continuou, sua voz se tornando mais intensa, quase um cântico.

— O ataque anterior ao feudo foi apenas uma distração. Um teste. Uma rachadura inicial. Eles pensaram que era uma invasão de bestas, um mero incômodo. Mas foi o primeiro passo do Ritual da Convergência Sombria. Cada criatura que enviamos, cada gota de Força Vital que elas drenaram, cada Nexo menor que ativamos… tudo isso serviu para enfraquecer a barreira. Para preparar o caminho.

Ele gesticulou para o mapa etéreo, e as linhas de energia arcana ao redor do Nexo Freimann começaram a se agitar, como águas turbulentas. — O verdadeiro ritual será realizado diretamente sobre o Nexo. Usaremos a energia que eles, em sua ignorância, acumularam em seu próprio lar. Desestabilizaremos os fluxos, e permitiremos que as forças do além vazem para o mundo físico. O Véu será rasgado. E então… o Retorno será inevitável.

Veritas Umbrae pausou, permitindo que suas palavras se infiltrassem na mente de cada um. O silêncio que se seguiu era carregado de antecipação. O sangue pingava do teto em alguns pontos, sem que houvesse qualquer fonte visível acima, um detalhe perturbador que apenas reforçava a natureza antinatural do local e do poder que ali se manifestava. Uma espiral invertida atravessada por três linhas verticais, o símbolo recorrente da Ordo Umbrae, começou a se formar no centro do mapa etéreo, pulsando em sincronia com o Nexo. Era a marca de sua ascensão, a promessa de um novo mundo forjado na escuridão.

★★★

Enquanto Veritas Umbrae concluía sua explicação, a energia na catacumba se intensificava, pulsando em uníssono com o Nexo Arcano projetado. Os acólitos, antes apenas observadores, começaram a entoar um cântico baixo e gutural, uma melodia dissonante que parecia rasgar o próprio tecido da realidade. O som das velas de osso estalando se misturava ao canto, criando uma sinfonia macabra que celebrava a escuridão iminente. A espiral invertida no mapa etéreo girava mais rápido, e a luz esverdeada dos cristais corruptos nas paredes se tornou quase insuportável, projetando sombras dançantes que pareciam ter vida própria.

No meio da congregação, um dos novatos, um jovem com o rosto pálido e olhos arregalados, não conseguia conter o tremor em suas mãos. Ele segurava uma adaga feita de osso e prata corroída, o artefato necessário para o próximo ato do ritual, a Sutura do Véu. Sua pele estava úmida de suor frio, e a devoção que o havia impulsionado até ali começava a ser corroída por uma dúvida insidiosa. Ele olhou para a adaga, depois para o círculo de ossos e sangue, e finalmente para o Veritas Umbrae, que parecia crescer em estatura a cada palavra proferida.

— E… e se falharmos? — ele perguntou, sua voz um fio, quase inaudível acima do cântico. — Se... eles nos encontrarem?

A pergunta, embora sussurrada, ressoou na câmara, quebrando a harmonia sombria do ritual. O cântico cessou abruptamente. Todos os olhos, os dos veteranos impassíveis e os dos novatos cheios de um terror renovado, se voltaram para o jovem. O silêncio que se seguiu era mais aterrorizante do que qualquer som, um vácuo opressor que sugava o ar dos pulmões.

Veritas Umbrae não respondeu verbalmente. Seus olhos negros, sem brilho, fixaram-se no novato. Lentamente, ele estendeu uma mão enluvada, e a sombra que tremulava de sua máscara pareceu se alongar, alcançando o jovem. O corpo do novato foi erguido no ar, não por uma força visível, mas como se cordas invisíveis o estivessem puxando. Ele se contorceu, seus pés balançando no vazio, mas nenhum som escapou de sua garganta. Seus olhos, antes cheios de medo, agora se arregalavam em um horror silencioso, enquanto seu corpo era esmagado em silêncio, seus ossos estalando com um som abafado, quase inaudível. Sua essência, uma névoa escura e etérea, foi sugada para fora de seu corpo, tornando-se uma parte do círculo de convergência, fundindo-se com os ossos e o sangue seco, adicionando sua Força Vital ao poder do ritual.

— A dúvida é o primeiro selo que deve ser quebrado.

A voz de Veritas Umbrae, agora mais fria e cortante do que nunca, reverberou pela catacumba. A lição era brutal, inegável. Os demais acólitos baixaram a cabeça, dobrando os joelhos em um gesto de submissão absoluta. O fanatismo, antes apenas uma chama, agora se tornava um incêndio incontrolável. A devoção, antes uma escolha, agora era uma necessidade. Não havia mais espaço para hesitação, para questionamentos. Aquele que duvidava, era consumido. Aquele que resistia, era aniquilado. A Ordo Umbrae não tolerava fraqueza, apenas a força da fé cega na escuridão que eles buscavam invocar. A espiral invertida no mapa etéreo pulsava com mais intensidade, absorvendo a essência do novato, e a promessa de poder se tornou ainda mais sedutora, mais aterrorizante.

★★★

Com a essência do novato absorvida pelo círculo, a energia na catacumba atingiu um pico. O cântico dos acólitos, antes gutural, agora se elevava em um coro estridente, uma ode à escuridão que se aproximava. A luz esverdeada dos cristais pulsava freneticamente, e as sombras dançavam com uma vida própria, contorcendo-se e alongando-se, como se o próprio Vazio estivesse se espreguiçando, pronto para despertar. O ar estava carregado com o cheiro de ozônio e podridão, e o som dos ossos estalando nas falsas velas se tornou mais audível, um ritmo macabro para a dança da loucura.

Veritas Umbrae, no centro do círculo, ergueu os braços, e a espiral invertida no mapa etéreo, agora brilhando com uma intensidade quase dolorosa, girava em torno do Nexo Arcano da mansão Freimann. Ele não era mais apenas um homem, mas um canal, um condutor para as forças que buscava invocar. Seus olhos negros, sem brilho, fixaram-se na direção onde, acima, estaria a mansão Freimann. Um sorriso cruel e satisfeito distorceu seus lábios sob a máscara corroída. A vitória, para ele, era uma questão de tempo, uma inevitabilidade.

— Durmam… enquanto ainda podem.

O sussurro, quase inaudível, carregava o peso de uma ameaça, de uma promessa de escuridão que em breve engoliria tudo. A cena na catacumba se desvaneceu, a luz esverdeada diminuindo, o cântico se tornando um eco distante, e o cheiro de podridão se dissipando lentamente, como se o horror estivesse se recolhendo, aguardando o momento certo para se manifestar novamente.

★★★

De volta a mansão Freimann. O contraste era gritante, quase doloroso. Na sala de estar, a lareira crepitava suavemente, lançando um brilho quente e acolhedor sobre os móveis de madeira polida. O ar estava impregnado com o aroma de chá de ervas e biscoitos recém-assados, um cheiro de lar, de segurança. Elian estava sentado no chão, ao lado de Belle, que lia um livro de contos de fadas para Vivian e Nico. A voz de Belle era suave e melodiosa, e Vivian, com seus olhos azul-marinho, estava aninhada no colo de Maria, que sorria com ternura. Nico, com seus cabelos avermelhados, estava absorto na história, seus olhos fixos nas ilustrações.

Eu observava a cena, meu coração se aquecendo com a simplicidade e a beleza do momento. A mão de Belle, que não estava segurando o livro, repousava sobre a minha, um toque leve, mas que transmitia uma sensação de paz e pertencimento. A conversa que tivemos sobre reencarnação, a melancolia que me assombrava, tudo parecia distante, quase irreal, diante daquela imagem de tranquilidade. Eles estavam completamente alheios à movimentação oculta, aos rituais sombrios que aconteciam sob seus pés, à ameaça que se aproximava a cada dia.

O contraste entre luz e trevas, esperança e desespero, começava a se formar. A inocência de Vivian, a ternura de Maria, a força silenciosa de Belle, e a minha própria busca por redenção – tudo isso era a luz que a Ordo Umbrae buscava extinguir. Mas, naquele momento, sob o teto seguro da mansão Freimann, a luz prevalecia. Era uma paz frágil, sim, mas uma paz que valia a pena lutar, uma esperança que valia a pena proteger. E, embora o perigo estivesse à espreita, a vida continuava, tecendo seus fios de felicidade e amor, alheia aos ecos sombrios da convergência que se aproximava.

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