O vento soprava suave, fazendo as folhas balançarem lentamente, como se o próprio mundo respirasse em paz — uma paz rara, quase estranha, nos tempos que viviam. O céu carregava tons dourados e rosados, anunciando o fim de mais um dia sobre a mansão Freimann. As sombras das árvores se estendiam sobre o gramado, alongando-se lentamente, enquanto os últimos raios de sol banhavam o jardim.
Sentada sobre uma pedra plana, os joelhos abraçados contra o peito, Belle observava em silêncio. Seu olhar não se desviava nem por um segundo da figura à sua frente.
Elian.
Ali, mais alguns metros adiante, ele se abaixava na grama, sorrindo de leve, mostrando a Vivian, com seus olhos brilhantes, e Nico, seu irmãozinho de quatro anos, como moldar pequenas rajadas de vento. A magia — não, a arte arcana — girava sutil na ponta dos dedos dele, levantando folhas secas que dançavam como mini redemoinhos no ar.
Belle apertou os braços contra as pernas, mordendo levemente o lábio inferior, e deixou escapar um suspiro. Seu peito estava estranho, apertado, desconfortável. Desde aquela conversa, desde aquele momento — em que, no calor do que parecia ser uma simples brincadeira, ela deixou escapar algo que nem sabia se estava pronta para dizer — tudo mudou.
Não em volta. Nele.
Desde que ela dissera que gostava dele — mesmo que de um jeito torto, desajeitado, quase sem perceber —, ele parecia diferente. Mais calado. Mais distante, às vezes. Mais... pesado.
Mas não foi isso que a deixou assim, olhando, pensando, quase se sufocando no próprio silêncio. Foi o que ele respondeu, com aquele olhar estranho, meio perdido, meio assustado:
“Belle... você acredita em reencarnação?”
Ela franziu o cenho, apertando mais os joelhos. “Por que…? Por que ele perguntaria isso… logo depois daquilo?”
O pensamento a corroía desde então. Ela tentava entender, organizar na cabeça — como se fosse possível colocar Elian em uma caixa, rotular, entender.
Mas não era.
Elian sempre foi estranho. Desde que se conheciam. Desde o primeiro treino, desde a primeira vez que ele segurou uma espada pequena demais para ele e, com um olhar sério demais para alguém da idade dele, tentou imitar o pai.
Sempre tão sério. Sempre tão... velho.
E agora, ela se perguntava — talvez pela primeira vez de verdade — “E se... ele for? Se for isso mesmo? Se ele for… alguém que já viveu antes?”
Ela apertou mais o queixo contra os joelhos, desviando o olhar para o céu, como se lá pudesse encontrar respostas. “Se fosse... isso muda quem ele é? Muda... quem ele é pra mim?”
Talvez, numa outra vida, ele tenha tido outras pessoas. Outras histórias. Talvez até... alguém que ele amou.
O pensamento a espetou no peito. Forte. Doeu mais do que deveria.
Mas então veio outro pensamento. Mais forte. Mais... quente.
“Mas... e se... nessa vida... for eu?”
Belle sentiu as bochechas queimarem. Tapou o rosto com as mãos, balançando a cabeça. — “Que pensamento idiota, Belle... idiota...!” — resmungou pra si mesma, em voz baixa.
Mas não parava. Não saía. Quanto mais tentava ignorar, mais crescia. “E se... se ele fosse realmente alguém que já viveu antes... será que ele se permitiria... viver agora? Amar agora? Ser... alguém, agora?”
O peito apertou. Um nó na garganta.
“Será que... se eu dissesse de novo… que gosto dele… ele… ele me veria como Belle? Como quem eu sou... agora? Ou como alguém... menor, passageira, diante do que quer que ele tenha sido antes?”
Ela mordeu o lábio mais forte, quase a ponto de machucar. O medo bateu. Mas junto veio um desejo estranho. Forte. Quase rebelde.
“Talvez... talvez eu queira ser... quem ele ama nessa vida. E se ele for alguém que atravessa vidas... então que me encontre. Toda vez.”
— Belle! — A voz de Vivian a arrancou dos pensamentos.
Ela piscou, olhou pra frente. Nico gargalhava, correndo atrás de um redemoinho de folhas que Elian fazia rodopiar, e Vivian tentava pegar as faíscas de vento com as mãos, como se fossem coisas sólidas.
Mas não era isso que fez Belle prender a respiração.
Era Elian. Olhando pra ela.
Ele não sorria, não daquela forma boba, aberta. Mas... ele olhava. Direto. Firme. Com aquele olhar dele — aquele que sempre parecia enxergar mais do que devia. Mais do que qualquer um.
E, por um segundo — um segundo pequeno, silencioso, eterno — eles ficaram assim. Olhando.
Belle sentiu o coração disparar, apertar, quase doer.
Ele, então, levantou uma das mãos, acenou. Não muito. Não como quem chama. Só... um gesto simples, leve. Como se dissesse: “Eu sei que você tá me olhando.”
Ela apertou os braços contra o peito, enfiou o rosto nos joelhos, e resmungou, baixinho:
— Argh... você é tão... tão... idiota... e tão... tão... incrível.
E, no fundo do coração, uma certeza começou a nascer, pequena, tímida, mas poderosa:
“Não importa quem ele foi. Não importa quantas vidas. Nessa... nessa, eu quero ser... quem ele escolhe.”
★★★
Enquanto Belle lutava em silêncio contra os próprios sentimentos, perdida nas contradições quentes que apertavam seu peito, enquanto ela se perguntava se o que sentia era tolice, desejo ou... amor, em outro lugar do mundo, bem distante daquela ternura, algo completamente diferente também fervia.
Mas ali não havia calor.
Ali, só restavam sombras.
Sob as ruínas esquecidas de uma cidade morta — cujos nomes haviam sido apagados dos mapas e da história —, um salão se estendia, vasto e sufocante, escuro como a boca de um abismo sem fim. As paredes pulsavam em veios verdes doentes, como carne necrosada atravessada por fios de luz moribunda. As colunas de pedra negra subiam até um teto que os olhos não podiam alcançar, perdido na escuridão absoluta.
No centro, uma mesa de obsidiana pura refletia, como um espelho distorcido, os rostos que a cercavam. Ela flutuava sobre um círculo de linhas prateadas, que desenhavam formas impossíveis no chão, tremeluzindo com uma pulsação viva, como se respirassem — ou talvez se alimentassem.
Dois homens. Dois senhores. Dois predadores.
Duque Malrik Von D’Argonth. Marquês de Essência Syzrak Vem Thal.
Sangue e Essência. Carne e Alma. Matéria e Vazio.
Silêncio. Apenas o som grave e pulsante da energia que vibrava sob seus pés.
Então, a voz múltipla e reverberada de Syzrak preencheu o salão:
— A ruptura da Trama ocorreu... há exatos dez anos. Isso... é fato.
Malrik cruzou as mãos, os dedos longos e finos tamborilando sobre a pedra. Seus olhos não piscavam. Apenas observavam, frios, calculistas, predatórios.
— O Véu cedeu. O selo foi violado. E algo... algo passou. Uma essência. — Sua voz era baixa, tão baixa que parecia arranhar o próprio ar ao ser pronunciada. — O problema, Syzrak, não é se ela atravessou. O problema... é que não sabemos... o que se tornou.
Syzrak deslizou uma pequena esfera de cristal sobre a mesa. Dentro dela, uma névoa dourada e negra se movia, girando, torcendo-se sobre si mesma, como se tentasse escapar.
— Deveria ter falhado. — Sua voz era uma névoa cortante. — O tecido do Fio Vital... não deveria aceitar uma essência extrínseca. Uma alma deslocada deveria se romper. Ser rejeitada pela Trama deste plano.
Malrik apertou os olhos, os músculos tensos.
— Mas não foi.
O mapa flutuante no centro da mesa respondeu ao toque do Duque, iluminando-se em traços dourados, linhas de fluxo arcano tremeluzindo como veias pulsantes. E ali, no coração do mapa, um ponto vermelho.
— O fluxo vibra. Há uma dissonância. Uma batida que não se encaixa no compasso da existência. — Sua voz ficou mais grave. — Está lá. Crescendo.
Syzrak não respondeu de imediato. Seus olhos — ou o que quer que fossem — pareciam dois redemoinhos de névoa, rodopiando lentamente, profundos e insondáveis.
Então respondeu, quase num sussurro arrastado:
— O recipiente... sobreviveu.
Malrik rosnou, apertando os punhos, as articulações estalando.
— Pior. Não só sobreviveu... está se desenvolvendo. Evoluindo. Crescendo.
Por alguns segundos, apenas o som abafado do cristal vibrando preencheu o salão.
A voz de Syzrak desceu para um tom quase gutural, denso, como se o próprio ar tentasse resistir ao que seria dito:
— Se isso se confirmar... então fizemos mais do que abrir um véu. Criamos um ser que... não pertence a este mundo. Que não... deveria... existir.
O olhar de Malrik tornou-se uma lâmina, fria e afiada.
— Você entende o que isso significa? — Sua voz era gélida, cortante. — Uma alma... não moldada pela Lei deste plano. Uma consciência que nunca deveria ter respirado aqui. Ela não é regida pelas âncoras deste mundo. Ela está fora do ciclo. Fora da Trama. Fora do Fio Vital.
Syzrak sussurrou, arrastando as palavras:
— Um erro...
Pausou.
— Ou... talvez... nossa maior criação.
O mapa tremeluzia, as linhas vibravam como se tentassem resistir à simples presença daquilo que discutiam.
Malrik então cravou os dedos no ponto vermelho do mapa, o olhar apertado, cheio de uma fúria contida.
— O recipiente está lá. No feudo Freimann. Está se tornando... algo.
Syzrak ergueu uma mão, e runas douradas se formaram no ar, símbolos tremeluzindo, distorcendo o espaço à sua volta.
— Mas saberemos. — Sua voz se tornou quase etérea. — Eu enviei... observadores.
O Duque se inclinou ligeiramente, o rosto semi-oculto pela sombra da própria presença. A voz saiu mais baixa, carregada de algo que não era exatamente medo... mas algo que roçava a borda dele.
— Se isso... aquilo... começar a despertar o que trouxe do Outro Lado... então, antes que se torne... incontrolável... nós o quebramos.
Syzrak não discordou. Apenas observou, olhos cintilando, e respondeu, tão baixo que quase se perdeu no som do próprio salão respirando:
— Ou... o moldamos. Para que seja... nosso. Sempre.
A esfera sobre a mesa tremeu. Um som surdo, que não parecia deste mundo, reverberou nas paredes — não um som que se ouvia, mas um som que atravessava o osso, que vibrava na própria carne, que fazia o coração esquecer como bater por um segundo.
E, nas fendas do Véu, onde a luz nunca brilhou,
Algo... observava.