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Capítulo – Ecos do Subsolo
Na manhã seguinte, o grupo acordou com o aroma de frutas quentes e especiarias no ar. O Erudito já os esperava, pendurado de cabeça para baixo numa corda invisível, girando devagar, como um relógio humano.
— "Estão atrasados. Doze horas e vinte e sete minutos. Ou três ciclos lunares, dependendo de como você mede tempo em bibliotecas encantadas..."
Tharion esfregava os olhos, ainda confuso. Kátyra já comia. Orren tentava entender como a sopa de aveia piscava para ele. Aelys apenas bufava.
Foi então que o Erudito parou de girar. Seus olhos se fixaram no vazio.
— "Outros passaram por aqui, sabiam?"
O silêncio caiu como uma pedra.
— "Antes de vocês. Há pouco tempo. Três deles. Sorrisos gelados, olhos como breu, cheiro de tinta antiga e mágoa. Um deixou cair uma pena envenenada. Levaram um livro que não deviam. Rasgaram páginas com a delicadeza de um corvo faminto."
Ele jogou sobre a mesa uma pluma negra, com veios roxos que ainda tremeluziam.
— "Os Irmãos Mavros... estavam apressados. Procuravam algo. Ou alguém."
Aelys empalideceu. Kátyra apertou os punhos. Orren ficou muito, muito quieto.
Tharion apenas disse:
— "Quanto tempo temos?"
O Erudito deu um sorriso torto.
— "O suficiente para escolher o próximo passo. Ou tempo demais para cometer um erro."
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– Ecos do Subsolo
O corredor de mármore cintilante ia se desfazendo em pedra crua conforme avançavam, como se a Biblioteca estivesse se despindo da ilusão. A cada passo, a luz suave das paredes se tornava mais fria, mais real. O Erudito não os acompanhava mais — desaparecera entre uma piscada e outra, deixando apenas o cheiro de canela e tinta fresca no ar.
Kátyra apertou o manto contra o ventre. O incômodo voltava em ondas leves, como o balançar de um navio. Ela fingiu que era apenas cansaço. Mas seus olhos traíram a dor.
Tharion notou. Apenas não disse nada. Ainda segurava firme o bolso onde guardara a chave de cristal.
Orren caminhava à frente, com o mapa nas mãos — um pergaminho quase vivo, que se mexia conforme eles andavam. As veias do traçado brilhavam em azul pálido.
— "Estamos perto. Mais três pontos e saberemos por onde os Mavros passaram." — disse Orren, como se falasse consigo mesmo, mas alto o bastante para ser ouvido.
Kátyra se aproximou e estendeu a mão, revelando o pequeno saco de sementes douradas.
— "O Erudito disse que eu deixei um desses cair. Talvez faça mais sentido com você."
Orren pegou o saquinho como se fosse feito de vidro e guardou com cuidado entre as dobras do casaco. Havia reverência em seu gesto.
Atrás deles, Aelys andava mais devagar, completamente absorvida pelo livro que o Erudito deixara sobre seu travesseiro. As páginas eram antigas, mas claras. A capa dizia apenas: "Sangue Azul e Prata: As Linhagens Veladas".
Ela parou de andar por um momento. Seus olhos estavam presos a uma página em que nomes se entrelaçavam como raízes de uma árvore. Um nome específico parecia brilhar em dourado — mas quando ela piscou, o brilho sumira.
Tharion.
Ela fechou o livro com cuidado e continuou a caminhar. Ninguém percebeu o arrepio que correu por sua espinha.
Kátyra levou a mão ao ventre novamente, e sorriu sozinha. Uma menina. Uma que, segundo o Erudito, herdaria o temperamento de Tharion. Ela sentia o eco disso ali, no silêncio do corpo.
A expedição continuava. Mas agora, algo mudara.
Eles sabiam que estavam sendo seguidos. E sabiam, também, que estavam à frente — ainda que por pouco.
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Enquanto isso no Castelo do Norte.
A neve começava a derreter ao redor do Palácio de Pedra Azul. Sinais de que a primavera lutava para nascer — mas o frio ainda reinava.
Dimitry observava o horizonte da sacada mais alta. Ao seu lado, Titos dormia enroscado em uma manta, segurando um ursinho de pano.
Cora entrou, silenciosa, trazendo um prato com frutas e um bilhete recém-chegado de um corvo mensageiro.
— "Ainda nada?" — ela perguntou, com voz baixa.
Dimitry balançou a cabeça. Seus olhos estavam fundos.
— "Eles estão vivos. Eu sentiria se não estivessem."
Cora pousou o bilhete ao lado da cama. Nele, a caligrafia de Kátyra. Poucas palavras. Um código antigo usado por eles, dizendo apenas: "Sementes plantadas. As raízes resistem."
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os Ataxas
Num salão sombrio sob o Monte Partheas, o ar era denso e pútrido. Voltrhuk, agora de olhos inteiramente negros, assistia ao crescimento de uma planta em uma bacia de ossos.
As flores eram negras e oleosas, e brotavam como espinhos vivos.
— "Eles ainda acham que lideram." — disse uma voz feminina, baixa e cruel.
A Mãe dos Darxas surgia da escuridão, com os pés nus manchados de sangue e um véu de sombra sobre os ombros.
— "A próxima praga já respira. Só falta o nome dela ser sussurrado."
Voltrhuk,sorriu. Um sorriso lento e torto, como o de uma fera prestes a morder.
— "Que sussurre então. Eu já cantei para ela no berço."
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os Irmãos Mavros
Na floresta petrificada de Gal'Dur, dois vultos se moviam entre troncos mortos e raízes congeladas no tempo.
Os Irmãos Mavros, silenciosos como sombras.
O mais velho parou, ajoelhando-se diante de uma rachadura no chão. De lá, brotava uma flor negra — a mesma praga de Voltrhuk. Ele arrancou-a com dois dedos e guardou num frasco.
— "Ele abriu a biblioteca." — disse o mais novo, como quem afirma uma traição.
— "E está mais perto do sangue verdadeiro do que imagina."
Eles se levantaram juntos. E sumiram entre as árvores, deixando para trás apenas pegadas que se apagavam ao toque do vento.
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