O vento da madrugada soprava como lamento sobre as ruínas de Rehal. Corpos haviam sido enterrados, as cinzas espalhadas pelo campo. Mas nenhuma cerimônia traria paz aos olhos dos sobreviventes. Nem aos de Ethan.
Desde o confronto no templo, algo dentro dele havia mudado.
Ele não sentia apenas o peso da morte — sentia o gosto da energia que o Elo Duplo absorvera de cada vida tirada. Um calor sombrio, quase prazeroso, que se aninhava como veneno lento em sua alma.
Maerlyn observava em silêncio enquanto ele mantinha-se afastado do grupo, isolado, como uma fera à beira de perder o controle.
— Ele está diferente. — ela comentou, num sussurro para Althar. — Cada vez que usa o Elo, se distancia um pouco mais de quem era.
— Ele está lutando contra algo que não compreende. — o velho respondeu. — E o que está selado dentro do Elo Duplo também luta para sobreviver.
Ela franziu a testa.
— Você acha que há... algo... dentro dele?
Althar não respondeu de imediato. Seus olhos estavam fixos em Ethan.
— Talvez não seja mais uma questão de "algo". Talvez ele seja o próprio recipiente. Ou a fagulha do que virá.
Naquela mesma noite, Ethan foi acordado por uma presença. Não um som, nem um toque — mas uma consciência invadindo seus sonhos.
Estava em um campo dourado, o céu tingido de roxo. No centro, uma árvore gigantesca se erguia, com galhos que tocavam as estrelas.
Diante dela, um homem o aguardava.
Vestia um manto negro com costuras de luz. Os olhos, dourados como os do próprio Ethan, ardiam com sabedoria e dor.
— Você finalmente está pronto para escutar. — disse o homem.
— Quem é você? — Ethan perguntou.
— Sou o eco do que você foi. O prenúncio do que será. Sou o que restou quando o Elo Duplo foi criado.
Ethan sentiu o chão tremer.
— Não entendo. Você está... em mim?
— Sim. E não. — respondeu a entidade. — O Elo Duplo foi forjado com parte da essência do Elo Primordial. Um fragmento de existência viva, consciente. Parte dessa essência... sou eu.
— Você é o Elo Duplo.
— Sou sua sombra. E seu reflexo. Fomos ligados no instante em que você nasceu. E não, Ethan… isso não foi por acaso.
Silêncio.
A árvore começou a perder folhas douradas, que se tornavam cinzas no ar.
— Você não nasceu no mundo dos Elos. — disse a entidade, encarando-o. — Foi trazido. Porque carregava uma alma antiga demais para o mundo real. Uma alma feita de possibilidades.
— Você quer dizer…?
— Você é o catalisador. O recipiente capaz de reescrever a própria estrutura do Elo. Por isso Kael despertou. Por isso todos estão se movendo. Porque o tempo do equilíbrio acabou.
Ethan deu um passo para trás.
— Se eu sou isso tudo... então sou o vilão da história.
O homem sorriu com tristeza.
— Ainda não. Mas cada escolha te empurra para mais perto disso.
E então a árvore explodiu em luz, e Ethan acordou — ofegante, suando, o peito queimando como brasa.
Maerlyn entrou no quarto, assustada.
— Você gritou. Algo aconteceu?
Ethan encarou as próprias mãos.
— Eu falei com... ele. A coisa dentro de mim. E não sei mais quem sou.
Horas depois, um batedor chegou com uma notícia inesperada.
— Um homem está no portão. Sozinho. Diz que conhece Ethan. E que tem respostas sobre o Elo.
Ethan foi até lá.
Parado à frente do portão, havia um jovem. Alto, olhos prateados, cabelos negros longos presos em um nó. Vestia roupas modernas demais para pertencer àquele mundo — calças justas, botas reforçadas, uma jaqueta de couro marcada por símbolos que Ethan reconheceu… da Terra.
O estranho ergueu a mão, como quem cumprimenta um velho amigo.
— Yo. Demorei, mas cheguei. Tive que atravessar três mundos quebrados e dois portais instáveis.
— Quem é você? — Ethan perguntou, a voz tensa.
— Alguém que veio do mesmo lugar que você. Da Terra. — o homem sorriu. — Meu nome é Kairo. E diferente de você… eu escolhi vir pra cá.
Ethan sentiu o chão sumir por um instante.
— Como sabe tanto sobre mim?
Kairo cruzou os braços.
— Porque estou aqui pra impedir que você destrua tudo. E porque você não é o único escolhido pelo Elo.